José Saramago

25.3.06 at 9:27 da manhã

Crítica de Augusto M. Seabra a "Il dissoluto assolto"

Pela sua relevância didáctica, transcrevo o texto de Augusto M. Seabra publicado nas páginas do suplemento "Mil Folhas", parte integrante da edição de hoje do jornal Público:

"Obras novas, modos de programar e de atenção

A situação de José Saramago "na ópera" é singular: um escritor reconhecido, galardoado com o Prémio Nobel, que vem tendo uma colaboração regular com um compositor, Azio Corghi, assinalada já de diferentes modos em três óperas, "Blimunda", "Divara" e agora "Il Dissoluto Assolto" - além de colaborações não cénicas. Comece-se pois por assinalar o facto, suficientemente singular repito, para afirmar também que ele não pode escamotear uma evidência cada vez mais saliente e uma interrogação, a saber: perante a absoluta menoridade composicional de Corghi são os textos de Saramago razão suficiente para o estatuto de privilégio que as obras da dupla têm tido na programação do São Carlos, teatro nacional e único de ópera?
O projecto que originalmente reunia apenas "Sancta Susanna" de Hindemith e "Il Dissoluto Assolto" de Corghi (é canónico as óperas serem referenciadas pela autoria de compositor, e só Saramago tem o hábito de se referir a cada uma delas como "a minha ópera"), na altura sem "Erwartung" de Schoenberg, foi gizado como uma co-produção entre o Scala de Milão e o São Carlos, situação prestigiante para o teatro português - e factor que também se deve assinalar. Como se sabe, a estreia deveria ter ocorrido há um ano em Milão, mas tendo-se declarado a crise que acabou por conduzir ao fim da autocrática direcção de Riccardo Muti, esta apresentação agora em Lisboa é a estreia mundial da obra.
Programar conjuntamente "Sancta Susanna" e "Il Dissoluto" é uma inteligente proposta de programação, que aliás leva inevitavelmente a invocar uma situação que recentes polémicas colocaram de novo na ordem do dia: a da "blasfémia". O entrosamento de religião e sexo na obra de Hindemith fizeram dela o caso paradigmático de ópera tida por "blasfema", que aliás tem toda uma história de protestos por parte de sectores católicos. E evidentemente há algo de "blasfemo" no desafio à Estátua de Comendador de Don Giovanni, "il dissoluto", o arquétipo que Saramago e Corghi retomaram.
A inserção entretanto do extraordinário monodrama que é "Erwartung" provocou de facto uma alteração, que pode ser sintetizada nos seguintes termos: em vez de um espectáculo duplo, "Sancta Susanna/Il Dissoluto", houve um duplo espectáculo, o díptico "Sancta Susanna"/"Erwartung" e depois o tal "Dissoluto". Isso mesmo é patente na construção do espectáculo, com um mesmo cenário para as óperas de Hindemith e Schoenberg, só com pausa - e não intervalo - entre elas, com as mudanças de cena feitas por freiras, comparsas na primeira das óperas, enquanto "Il Dissoluto" é de todo diferente.
"Susanna" e "Erwartung" descendem dos abismos libidinais da "Salomé" de Strauss (foi há um século, precisamente) e são contemporâneas de Freud e da importância que para ele tiveram os estudos de Charcot sobre a histeria. Tivesse aliás a aproximação/contraposição de Hindemith e Schoenberg sido pensada de princípio, a complementaridade mais se estabeleceria antes com outra das pequenas óperas do primeiro, "Mörder, Hoffnung der Frauen/Assassinato, Esperança das Mulheres", com texto de Oskar Kokoscha. Em qualquer caso, e mesmo que se possa apontar à direcção musical de Marko Letonja e à encenação de Andrea de Rosa uma preferência pela funcionalidade discreta, ainda que operativa, por demais contida face ao potencial dramático das obras, de "Erwartung" sobretudo, o díptico é notável, com a magnífica presença de Brigitte Pinter, Klementina numa ópera, a Mulher só na outra. Maior é então a queda com "Il Dissoluto".
Eu até entendo que há aspectos interessantes no texto de Saramago, que a um tempo remetem para o fantasma da impotência do sedutor e toda uma tradição de leitura do mito, e a outro são muitos característicos do autor, assinalando relações com "História do Cerco de Lisboa", "Todos os Nomes" e mesmo "O Homem Duplicado" (a relação Giovanni/Leporello, a inscrição dos nomes no catálogo). Mas a concreta obra que nos é dada a ouvir é o cúmulo do "pastiche" anódino.
Corghi é hoje um compositor em que a famosa editora Ricordi aposta forte, enquanto por vezes até é difícil encontrar partituras e materiais de outros autores que a casa em tempos publicou. A questão fundamental é todavia a de ser inaceitável que este compositor passe por minimamente representativo do que mais saliente existe no teatro musical contemporâneo. E a questão redobra-se então de uma outra, que tem também de ser claramente inscrita: por via de Saramago, as óperas de Corghi ganharam uma espécie de estatuto de obrigatoriedade num São Carlos, teatro nacional de ópera, de que permanecem ausentes autores maiores da contemporaneidade, como desde logo Nono e Berio - ou talvez deva mesmo dizer Calvino/Berio.
E com esta situação decorre também uma amplificação da notoriedade operada pelos "media", até com nótulas de recensão destituídas de qualquer pensamento crítico, enquanto outros factos importantes pouco são assinalados ou são-o sem questionamento das suas condições de apresentação. É-me inaceitável que o destaque à mediocridade anódina do "Dissoluto" de Saramago/Corghi vá de par com a falta de cuidado na estreia de "Graffiti (just forms)" de Pinho Vargas e a inexistência de atenção crítica às notáveis "Histórias Fantásticas" de Luís Tinoco.
Tenho uma posição duplamente reservada perante "Graffiti", estreada pela Orquestra Sinfónica Portuguesa, também sob a direcção de Marko Letonja, no passado dia 4 no CCB. No meu conhecimento continuado do trajecto do compositor não me é claro que a presente obra, num mesmo tipo de atitude expressiva/reflexiva da admirável "Six Portraits of Pain" estreada na inauguração da Casa da Música, consiga todavia uma equiparável articulação de desenho geral e individualização dos sete "Graffiti", o que aliás de algum modo está enunciado no próprio título. Mas se daí se pode deduzir também uma situação de precariedade, já não é aceitável que uma obra encomendada pelo São Carlos, pelos poderes públicos, para além de correr o sério risco de se inscrever na cultura do desperdício reinante e no caso a remissão a uma única apresentação, para mais o seja com menor cuidado, certamente derivado de poucos ensaios e empenho: a falta de trabalho na sonoridade das cordas ou de definição de planos levou ao paroxismo de termos ouvido sim aproximações, quais ""sketches" de "graffiti""!
É sabido que esta precariedade de obras contemporâneas, encomendadas mas depois na maioria das vezes objecto apenas da primeira audição, é uma situação genérica, analisada no famoso estudo de Pierre-Michel Menger, "Le Paradoxe du Musicien - Le Compositeur, le Mélomane et L"État dans la Societé Contemporaine". Mas o cidadão, e o cidadão melómano, tem o direito de interrogar publicamente se o São Carlos supõe que anda a fazer obrigações públicas repetindo situações destas. Acaso serão programadas de novo, por exemplo, as obras constantes da proposta Quatro Postais de Compositores Portugueses?
Por falar nessas, saudei na altura particularmente "Zapping" de Luís Tinoco, brilhante objecto paródico, aludindo directamente às outras duas obras que constavam do mesmo programa, as Sinfonias nº102 de Haydn e nº39 de Mozart. Mas para além desse estatuto eminentemente circunstancial, "Zapping" foi afinal uma obra que deixou marcas. Com "Sundance Sequence", é uma das peças de Tinoco que ocorreu ao ouvir agora as brilhantes "Histórias Fantásticas" sobre textos de Terry Jones (dos Monthy Python), encomenda da Orquestra Metropolitana de Lisboa, em apresentação conjunta com o São Luiz.
O sentido da narrativa e da direccionalidade musical, a pulsão, o brilhantismo da invenção tímbrica fazem de "Histórias Fantásticas" um notável sucesso. E deu gozo, que é mesmo o termo, ver o comprometimento do narrador João Reis ou dos músicos tão bem dirigidos por Cesário Costa, com grande destaque para o concertino Xuan Du.
Ao lado um do outro, aprendesse o São Carlos, teatro nacional, alguma coisa com os cuidados postos nesta apresentação, fazendo justiça à obra, pelo São Luiz, teatro municipal. Coisas..."

18.3.06 at 6:47 da tarde

Também o "JL"

Também o resultado da nova parceria de Azio Corghi e José Saramago são objecto de destaque na edição do JL desta quinzena (nº 925). Está disponível online a entrevista com o escritor, da autoria de Bruno Caseirão:

"Luz rasante sobre o mito

Bruno Caseirão: No prefácio a Don Giovanni, ou O dissoluto absolvido escreve: «Se há uma ópera no mundo capaz de pôr-me de joelhos, rendido, submetido, é esta (...) a música de cena mais sublime que alguma vez havia sido composta». Mesmo assim deixou-se tentar...
José Saramago: Sim, é certo, deixei-me tentar, e ainda hoje me surpreende o atrevimento. Confesso que estive a ponto de desistir da empresa, por não encontrar maneira de escapar ao padrão dramático que, com poucas variantes, tinha vindo a ser seguido desde Tirso de Molina. O que me ajudou foi a minha antiga convicção de que Don Giovanni não podia ser, simplesmente, um odiado sedutor de donas e donzelas. Foi, sobretudo, aquele seu gesto de dignidade suprema quando rejeita, como se de uma ofensa se tratasse, as fáceis tentações de um falso arrependimento. Achei a solução das minhas dificuldades na pergunta que está na raiz de quase todo os meus romances: «E se?...». E se Don Giovanni não tivesse morrido, e se Don Giovanni não tivesse caído no inferno? As hipóteses são inúmeras, eu fiquei-me com a denúncia da falsa moral dos hipócritas. De todo o modo, o libreto de Lorenzo da Ponte é inultrapassável. Quanto à minha relação com a música de Mozart no Don Giovanni, ela é tão forte, tão intensa, que tenho chegado ao extremo, quando não posso escutar a ópera toda, de ouvir uma vez e outra aqueles sublimes oito minutos do diálogo final entre Don Giovanni e o Comendador.

O profícuo caminho da colaboração com Azio Corghi é já longo, do Teatro Musical, com Blimunda, estreada em 1990, e Divara (1993), passando pela produção vocal, de La morte di Lazzaro (1995), ?sotto l’ombra che il bambino solleva (1999), Cruci-Verba (2001) a De paz e de guerra (2002). O que encontra neste compositor, na sua arte, na sua música, para lhe confiar as suas obras?
Não conhecia nada de Azio Corghi quando ele me pediu autorização para adaptar o Memorial do Convento. Mas quando, finalmente, pudemos falar do assunto, olhos nos olhos, compreendi que podia confiar no homem e no artista. A partir desse feliz encontro só tenho tido motivos para me congratular. Uma grande amizade nasceu entre nós, cada composição sua ajuda-me a compreender melhor a minha própria obra.

Naturalmente que critica a libertinagem de Don Giovanni, a morte do Comendador, (mesmo que em duelo), mas apesar dessa crítica (à) ética, transparece na sua versão uma admiração pela coerência, pelo triunfo da vontade, da liberdade, da coragem, de Don Giovanni. Qual a «Principal Ideia» como refere Azio Corghi, da sua versão do mito de Don Juan?
A «principal ideia» a que se refere Azio Corghi é essa, precisamente: Don Giovanni é muito menos canalha que muitos dos que passam a vida a dar lições de moralidade. E vai prová-lo no instante derradeiro, quando a morte é iminente. Se eu salvei Don Giovanni foi porque, apesar das suas aparentes malvadezas eróticas, ele o tinha mais do que merecido.

Não me lembro de, no conjunto da sua obra literária, existirem referências negativas a personagens femininas, como aquelas que transparecem sobre Donna Anna e Donna Elvira em Don Giovanni ou O Dissoluto absolvido. Para o escritor que imortalizou, com a personagem de Blimunda, o Ideal Feminino e que disse um dia: «A mulher é o motor do Homem (...). Os meus personagens masculinos são mais débeis, são homens, são homens que tem dúvidas, são personagens masculinos complexos (...) as mulheres não» estamos perante uma mudança/novidade.
Não há nem mudança, nem novidade. Não fiz Donna Anna nem Donna Elvira, já as encontrei feitas. Olhei para elas e duvidei do papel de vítimas exemplares que se esforçam por representar. Donna Elvira estaria disposta a perdoar tudo se Don Giovanni voltasse para os seus braços, e Donna Anna, que recebia Don Ottavio na cama às escondidas do pai, não pode alardear tanto de pureza como a todo o momento nos quer dar a entender.

Em alguns ensaios de reflexão estética, como A Estátua e a Pedra ou Andrea Mantegna, Un’etica, un’estetica, salienta a busca da perfeição formal, uma concepção ética da expressão e o romance como veículo para a reflexão da vida. Em que medida estes conceitos se tornam visíveis em Don Giovanni ou O dissoluto absolvido?
O meu Don Giovanni quis ser uma espécie de luz rasante sobre o mito, pretendeu mostrar os acidentes orográficos do que tem passado por ser uma verdade lisa e íntegra. Mas, acima de tudo, quis dizer que a dignidade e indignidade vivem juntas nos seres humanos que somos e que é necessário muito esforço, todos os dias, para que a primeira não acabe por se afogar no pantanal da segunda.

Quem leu as suas duas últimas obras, Don Giovanni ou O dissoluto absolvido e As Intermitências da Morte, não deixará de se questionar sobre a importância do Amor e da Morte: Don Giovanni o mito, torna-se Giovanni o homem. É através do amor de Zerlina que também escapa à Morte e a Morte (nas Intermitências), humaniza-se na medida em que ama um homem.
O amor de Zerlina não veio salvar Don Giovanni da sua morte, mas do desespero. E a morte das Intermitências não terá outro remédio senão desprender-se, provavelmente num dia não distante, dos braços do homem a quem, como mulher, tinha amado. Não é verdade que o amor seja capaz de vencer a morte. Nada vence a morte. O que sim, é certo, é que o mesmo amor que todos os dias vai morrendo, também todos os dias vai ressuscitando.

No prefácio diz: «Era certo que sempre havia pensado que Don Giovanni não podia ser tão mau como andavam a pintar desde Tirso de Molina, nem Dona Ana e Dona Elvira tão inocentes criaturas, sem falar no Comendador, puro retrato de uma honra social ofendida, nem de um Don Octávio que mal consegue disfarçar a cobardia sob as maviosas tiradas que no texto de Lorenzo da Ponte vai debitando». Na humanização de Don Giovanni alcançada através do amor de Zerlina, uma jovem criada, naturalmente de origem humilde, e não através de nenhuma das Donnas: Elvira e Ana, haverá uma crítica social? Ou, simplesmente, até Zerlina, ninguém amara Don Giovanni?
Não duvido que as mulheres tenham amado Don Giovanni. Seduziram-no e, em muitos casos, amaram-no. Elas são as sedutoras, não o pobre Don Giovanni, sempre correndo atrás do odor di femina, como se fosse empurrado por um tropismo irresistível. O problema está em saber se Don Giovanni é capaz de amar. E para essa questão não creio que se tenha encontrado resposta.

A concepção ética do escritor, de que atrás falávamos, levou-o a eliminar Don Octávio, devido à sua faiblesse de carácter, à sua cobardia? Apesar de, deste modo, ter alterado subitamente o carácter giocoso da ópera?
Com perdão da vulgaridade da expressão, Don Ottavio é um fala-barato, além de um cobarde. Como Lorenzo da Ponte não o matou, matei-o eu. Não se perdeu nada. Donna Anna depressa encontrará um substituto.

No final da peça, Leporello diz: «Deus e o Diabo estão de acordo em querer o que a mulher quer?». Estaremos aqui, já não perante o Mito de D. João, mas de um outro, porventura mais poderoso: O Mito da Mulher e do Eterno Feminino?
Nada é eterno, meu caro Bruno. E eu, ao mito da mulher, sempre preferi a mulher desmitificada. Não foram as mulheres que se mitificaram a si próprias, foram os homens. E não parece que elas tenham ganho muito com isso."

at 6:39 da tarde

José Saramago e Azio Corghi no "Mil Folhas"

O suplemento "Mil Folhas", editado hoje com o jornal Público, publica um artigo sobre a ópera O dissoluto absolvido, a qual estreia hoje à noite no Teatro Nacional de São Carlos. Pela sua manisfesta relevância didáctica, aqui fica transcrito o texto de Cristina Fernandes:

"D. Giovanni: "Absolvido, mas por quanto tempo?"

O próximo espectáculo da temporada lírica do Teatro Nacional de São Carlos (com estreia marcada para hoje, às 20h, e repetições nos dias 20, 22, 24 e 26) propõe três obras curtas em um acto, obras que de diferentes maneiras se manifestam em ruptura com as convenções ou os códigos instituídos: "Erwartung" (Espera), de Schoenberg; "Sancta Susanna", de Hindemith (estreia em Portugal); e "Don Giovanni, Il Dissoluto Assolto" (O Dissoluto Absolvido), com libreto do escritor José Saramago e música de Azio Corghi (n. 1937), que terá a sua estreia mundial nesta ocasião. A direcção musical será de Marko Letonja e a encenação de Andrea De Rosa.
Depois de "Blimunda", baseada no "Memorial do Convento", e de "Divara-Água e Sangue", a partir do drama teatral "In Nomine Dei", Don Giovanni constitui a terceira colaboração entre o compositor italiano e o escritor português no domínio do teatro musical, com a particularidade de Saramago ter escrito desta vez um libreto de raiz. Corghi apenas adaptou alguns detalhes no momento de dar "voz musical" ao libreto.
A edição da Editorial Caminho do texto original de Saramago é acompanhada por um interessantíssimo texto de Graziella Seminara que relata com grande detalhe a forma como os dois autores foram construindo e discutindo a obra através de uma intensa troca de "emails". Saramago parte de Da Ponte para fazer uma releitura pessoal do mito que transforma o sedutor em seduzido e que lhe retira a conclusão moralista e a punição por uma entidade sobrenatural. A punição do libertino chega pelas mãos de D. Elvira, D. Ana e D. Otávio que se unem para lhe causar a humilhação maior negando as suas conquistas e a sua virilidade, que o famoso catálogo (trocado às escondidas por um livro em branco por D. Elvira) não mais poderá testemunhar...
"Era certo que sempre havia pensado que D. Giovanni não podia ser tão mau como o andavam a pintar desde Tirso de Molina, nem Dona Ana e Dona Elvira tão inocentes criaturas, sem falar do Comendador, puro retrato de uma honra social ofendida, nem de um Don Otavio, que mal consegue disfarçar a covardia sob as maviosas tiradas que no texto de Lorenzo da Ponte vai debitando", escreve o escritor José Saramago no prefácio desta obra teatral.
Don Giovanni aceita corajosamente a punição que lhe é proposta por um comendador preso numa estrutura gerida por convenções, não procurando salvaguardar-se hipocritamente num perdão corruptor da sua responsabilidade ética. Será salvo por Zerlina, parecendo despertar para uma nova existência assinalada também simbolicamente pelo catálogo que Leporello queima na lareira. Mas a dúvida fica no ar, colocada pelo enigmático manequim de D. Elvira: "Absolvido, mas por quanto tempo?"
A ópera, encomendada pelo Teatro alla Scala de Milão para figurar num programa com "Sancta Susanna", de Hindemith, esteve para ser estreada em Milão no ano passado mas o período conturbado vivido pelo prestigiado teatro italiano há cerca de um ano, que levou à demissão de Muti e a várias greves dos músicos, fez com que a estreia mundial transitasse para Lisboa.

A dupla Corghi e Saramago

Azio Corghi já escreveu sete obras musicais sobre textos de Saramago, sendo esta a terceira colaboração no campo da ópera. Para o compositor italiano a literatura é uma grande fonte de inspiração quando se trata de encontrar temas teatrais. O que mais o fascina em Saramago, "um homem que denuncia as injustiças do mundo mas que tem uma grande sede de viver", é o facto de cada obra literária do escritor português conter tudo lá dentro: "romance, poesia, teatro, música!", disse Corghi ao PÚBLICO.
A música começou a ser composta antes de o libreto estar completamente pronto, mas foi sendo ajustada em função das longas conversas que os dois autores iam tendo por "email", ditando o texto vários dos procedimentos musicais. "O próprio Saramago partiu do texto de Da Ponte, por exemplo logo no Prólogo com D. Elvira e Leporello, introduzindo a famosa ária do catálogo. E no decurso da ópera cita várias vezes o texto de Da Ponte. Havia uma indicação clara para eu pegar na ária de Leporello, mas tratando-se de uma releitura da história, faço um trabalho de ironia através das citações."
Esta obra difere muito de "Blimunda" e "Divara" uma vez que se tratava de "histórias trágicas bastante mais densas". Para Corghi "o D. Giovanni reflecte uma outra ligeireza - uma certa elegância e "souplesse", que tentei também recuperar na música." Num processo inverso ao de "Divara" no "Dissoluto Absolvido" as personagens masculinas cantam e as femininas falam: "Não se trata de um "parlato" livre mas de um "parlato" rítmico escrito sobre a música. Do "parlato" passam ao "sprechgesang" ou mesmo ao canto", explicou o compositor. "Duas das actrizes também são cantoras e conseguem realizar muito bem este trabalho."
Cada personagem tem uma expressão musical própria, mas ao contrário do que fez Mozart, Corghi não se preocupa em caracterizar tipos sociais (aristocráticos ou populares). "As personagens são caracterizadas por timbres e temas musicais (alguns derivados de cantos populares italianos). Sempre trabalhei com citações musicais, com homenagens musicais onde se pode revisitar toda uma história. Para além dos temas populares usei temas da música clássica que são inseridos como provocação ou ironia. No início, quando o coro sussurra, cria uma espécie de vento, depois ouve-se o tema da ária da Calúnia de Rossini... Nesse momento chegam D. Ana, D. Elvira e D. Otavio que irão caluniar D. Giovanni, dizer que é impotente, que nunca conquistou nenhuma mulher."
Às citações musicais contrapõem-se situações de forte intensidade dinâmica e variedade tímbrica, favorecidas por uma orquestra imponente. Uma vez que o projecto nasceu por iniciativa do Teatro alla Scala de Milão e se destinava a um programa que também incluía "Sancta Susanna" Corghi optou por usar uma orquestra de grandes dimensões semelhante à que é usada por Hindemith. "Juntei-lhe ainda - não sei se por paixão se pelo facto de conhecer muito bem os instrumentistas da Orquestra do Teatro alla Scalla - uma grande secção de percussão que confere à obra um sabor muito rítmico, que também existe nos cantos populares. Diverti-me a procurar soluções orquestrais e tímbricas. Há também um trabalho de "espelhos" no tecido musical, que refletem a polirritmia, polimetria", continua o compositor italiano.
O coro masculino tem um papel importante como comentador da acção (à maneira da tragédia grega), mas também colocando perguntas e respostas. Permanecerá por detrás do palco até ao final da obra. As suas intervenções oscilam entre os jogos fonéticos e a clareza das palavras. Corghi refere que tanto "intervém como "venticello" [vento], quando acompanha o tema rossiniano da calúnia, murmurando e sussurando, como pode explodir nos momentos mais enfáticos das intervenções do Comendador." A ambiguidade dos seus comportamentos é jogada sobre a exclamação e a interrogação e no Intermezzo cantará "a cappella", a "berceuse" do tema de Zerlina.

Uma obra provocatória

Tal como Don Giovanni também "Sancta Susanna" na ópera de Hindemith recusa arrepender-se do seus desejos carnais, sofrendo o supremo castigo de ser emparedada viva. Baseada no drama homónimo de August Stramm, faz parte do conjunto das três primeiras óperas, de Paul Hindemith, todas em um acto, criadas no início dos anos 20: "Mörder, Hoffnung der Frauen" (1921), "Das Nusch-Nuschi" (1921) e "Sancta Susanna" (1922). Reflexo do estado de espírito que se sucede à bárbara carnificina da primeira Grande Guerra, as obras causaram escândalo por causa dos seus libretos que chocaram a moral burguesa pela forma explícita e, por vezes provocatória, como abordam a sexualidade.
"Erwartung", composta em dezassete dias nos finais de 1909 é uma das primeiras obras atonais de Schoenberg e um exemplo emblemático do Expressionismo. Trata-se de um monodrama em que uma mulher procura no meio de um bosque, com crescente e cada vez mais torturante ansiedade, o homem a quem apaixonadamente ama e pelo qual sente um implacável ciúme, encontrando-o por fim morto.
O maestro Marko Letonja considera que a ideia do director do Teatro Nacional de São Carlos, Paolo Pinamonti, de colocar a "Erwartung" de Schoeberg entre a ópera de Hindemith e a ópera de Corghi é muito pertinente. "Temos duas óperas do início do século XX e uma criação recente, sendo muito interessante encontrar os pontos de contacto e as divergências. Em Schoenberg e Hindemith o Expressionismo é abordado de dois pontos de vista completamente diferentes. Ambas as obras retratam uma intensa evolução das emoções e solicitam um canto muito expressivo, embora sem frases em "cantabile" no sentido clássico. Na composição de Corghi os homens cantam e as mulheres falam. No Schoenberg, uma mulher fala e canta. No Hindemith cantam todos. Mas o "sprechgesang" está presente nas três obras.", disse ao PÚBLICO o maestro.
A evolução psicológica das personagens nas obras de Hindemith e Schoenberg é um dos aspectos mais fascinantes mas também um dos maiores desafios da interpretação. "Uma coisa é o que se sente, outra é o que se pensa. Em "Erwartung" temos o bosque e o medo por um lado e por outro as recordações. Há muitas perguntas em aberto. A protagonista tinha morto ou não o marido? Schoenberg e Freud nunca se encontraram, mas é quase certo que Schoenberg estudou alguns dos seus casos de histeria. Na "Sancta Susana" Klementia conta um episódio que depois volta a acontecer. Trata-se de expressões visíveis mas também do desenvolvimento mental das personagens. Além das dificuldades de interpretação dramática há também grandes desafios técnicos", diz o maestro. Schoenberg escreveu "Erwartung" para um soprano dramático, mas a partitura tem muitas passagens na oitava baixa. "Estou muito contente por ter Brigitte Pinter a fazer o papel. É uma cantora como uma tessitura entre o meio-soprano e o soprano, um meio-soprano com agudos, portanto ideal. É um papel terrível, meia hora de música com três intervalos de uns 15 segundos para cantora! Supera a Isolda de Wagner em dificuldade."
Esta é a primeira obra de Corghi que Marko Letonja dirige mas a tarefa não foi difícil para ele porque "a partitura era muito clara", explica. "Era como se a música escrita me falasse. Pelo contrário em Schoenberg senti mais a necessidade de analisar o que ele escreveu antes e depois. "Erwartung" situa-se após o período da música pós-romântica e antes do dodecafonismo. Um dos pontos mais fascinantes da partitura é a polifonia. Há poucas linhas dobradas, a orquestra é tratada como uma enorme orquestra de câmara chegando a haver 15 linhas ao mesmo tempo que se cruzam.""

16.3.06 at 9:05 da tarde

Saramago no Teatro Nacional de São Carlos

Segundo o Jornal de Notícias de hoje, "O Teatro [Nacional de] São Carlos, em Lisboa, apresenta amanhã três óperas, entre elas, em estreia absoluta, "Il dissoluto assolto" ("O dissoluto absoluto [absolvido]", em português) de Azio Corghi com libreto de José Saramago, sob a direcção de Marko Letonja.

Ópera inspirada na peça "Don Giovanni", de Molière, ""Il dissoluto assolto" viu o seu autor optar por um protagonista mais seduzido que sedutor.

"Don Giovanni" é o terceiro projecto que reúne Saramago e Azio Corghi. Nos principais papéis estão o barítono napolitano Vito Priante, o baixo Julian Rodescu e o barítono Gianfranco Montesor, para além da actriz e cantora Sonia Bergamasco.

"Il dissoluto assolto" resulta de uma encomenda do teatro milanês que já contratara "Blimunda", inspirada no romance de José Saramago "Memorial do Convento".

"Blimunda" juntou pela primeira o Nobel da Literatura e o compositor italiano."

15.3.06 at 8:20 da tarde

Autobiografia de Saramago para Novembro

Aqui fica a notícia do Ávila Digital, pela mão de Patricia García Robledo:
"El escritor luso ofreció una conferencia en Brieva y otra en ´Los Lunes Literarios´ Saramago anuncia en Ávila la publicación, en noviembre, de su autobiografía de la infancia

El Premio Nobel de Literatura de 1998, José Saramago, adelantó ayer en Ávila que en el mes de noviembre saldrá a la luz su nueva obra, una “autobiografía distinta, porque sólo abarca hasta los 14 años” que llevará por título
Mis pequeñas memorias.

Este nuevo libro del escritor luso se publicará simultáneamente en portugués, para Portugal y Brasil, en español y, posiblemente, en catalán.

Saramago insistió en que no se trata de una biografía “ni del escritor ni del hombre, sino del niño” que ha sido, y puede ser “una forma de entenderme mejor a mí mismo”, que s inspira en el principio de “déjate llevar por el niño que hay en ti”.

Sin olvidar la niñez
El escritor abogó por no olvidar la infancia, la niñez y la primera adolescencia. En este sentido, aseguró que “cuando yo me vaya de aquí, nos iremos dos personas, porque me llevaré de la mano al niño que he sido y del que soy consecuencia”.

El escritor portugués recalcó la importancia de la relación entre el escritor y el lector, a los que une “una especie de cordón umbilical”.

Acerca de ello, aseguró que las numerosas cartas que recibe de sus lectores reflejan “una relación más allá del escritor y el lector, es una relación entre personas” y que le conceden “el privilegio de tener con ellos una relación de amistad”.

“Normalmente, las personas escriben para hablar de su propia vida, y si alguien habla de su vida a alguien, es porque es su amigo”. Por esta relación, aseguró Saramago, él como escritor se cree “necesario”.

Portugués de corazón
José Saramago y su mujer reparten su residencia entre Lisboa, Lanzarote y Madrid, debido a la “vida complicada por los compromisos” que les obligan a estar viajando a menudo y por la que no han tenido “más remedio que tener tres casas”.

Saramago, que abandonó por “un problema con un gobierno que, en democracia, censuró mi obra”, y no “por un problema con Portugal” su país natal, defendió que se siente portugués.

De hecho, apuntó el octogenario escritor, “nunca” ha tenido una ruptura con su país, puesto que su marcha fue “un acto de protesta con un gobierno”, y por ello paga sus impuestos en el país luso, sin haber buscado “un paraíso fiscal”.

Saramago ofreció ayer en la capital abulense una conferencia en el ciclo ´Los Lunes Literarios´ que organiza Caja de Ávila, a través de su Obra Social y Cultural, ante un auditorio repleto de público. Anteriormente, durante la tarde, el escritor portugués ofreció una charla sobre literatura a las internas del Centro Penitenciario de Brieva."




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