José Saramago

25.3.06 at 9:27 da manhã

Crítica de Augusto M. Seabra a "Il dissoluto assolto"

Pela sua relevância didáctica, transcrevo o texto de Augusto M. Seabra publicado nas páginas do suplemento "Mil Folhas", parte integrante da edição de hoje do jornal Público:

"Obras novas, modos de programar e de atenção

A situação de José Saramago "na ópera" é singular: um escritor reconhecido, galardoado com o Prémio Nobel, que vem tendo uma colaboração regular com um compositor, Azio Corghi, assinalada já de diferentes modos em três óperas, "Blimunda", "Divara" e agora "Il Dissoluto Assolto" - além de colaborações não cénicas. Comece-se pois por assinalar o facto, suficientemente singular repito, para afirmar também que ele não pode escamotear uma evidência cada vez mais saliente e uma interrogação, a saber: perante a absoluta menoridade composicional de Corghi são os textos de Saramago razão suficiente para o estatuto de privilégio que as obras da dupla têm tido na programação do São Carlos, teatro nacional e único de ópera?
O projecto que originalmente reunia apenas "Sancta Susanna" de Hindemith e "Il Dissoluto Assolto" de Corghi (é canónico as óperas serem referenciadas pela autoria de compositor, e só Saramago tem o hábito de se referir a cada uma delas como "a minha ópera"), na altura sem "Erwartung" de Schoenberg, foi gizado como uma co-produção entre o Scala de Milão e o São Carlos, situação prestigiante para o teatro português - e factor que também se deve assinalar. Como se sabe, a estreia deveria ter ocorrido há um ano em Milão, mas tendo-se declarado a crise que acabou por conduzir ao fim da autocrática direcção de Riccardo Muti, esta apresentação agora em Lisboa é a estreia mundial da obra.
Programar conjuntamente "Sancta Susanna" e "Il Dissoluto" é uma inteligente proposta de programação, que aliás leva inevitavelmente a invocar uma situação que recentes polémicas colocaram de novo na ordem do dia: a da "blasfémia". O entrosamento de religião e sexo na obra de Hindemith fizeram dela o caso paradigmático de ópera tida por "blasfema", que aliás tem toda uma história de protestos por parte de sectores católicos. E evidentemente há algo de "blasfemo" no desafio à Estátua de Comendador de Don Giovanni, "il dissoluto", o arquétipo que Saramago e Corghi retomaram.
A inserção entretanto do extraordinário monodrama que é "Erwartung" provocou de facto uma alteração, que pode ser sintetizada nos seguintes termos: em vez de um espectáculo duplo, "Sancta Susanna/Il Dissoluto", houve um duplo espectáculo, o díptico "Sancta Susanna"/"Erwartung" e depois o tal "Dissoluto". Isso mesmo é patente na construção do espectáculo, com um mesmo cenário para as óperas de Hindemith e Schoenberg, só com pausa - e não intervalo - entre elas, com as mudanças de cena feitas por freiras, comparsas na primeira das óperas, enquanto "Il Dissoluto" é de todo diferente.
"Susanna" e "Erwartung" descendem dos abismos libidinais da "Salomé" de Strauss (foi há um século, precisamente) e são contemporâneas de Freud e da importância que para ele tiveram os estudos de Charcot sobre a histeria. Tivesse aliás a aproximação/contraposição de Hindemith e Schoenberg sido pensada de princípio, a complementaridade mais se estabeleceria antes com outra das pequenas óperas do primeiro, "Mörder, Hoffnung der Frauen/Assassinato, Esperança das Mulheres", com texto de Oskar Kokoscha. Em qualquer caso, e mesmo que se possa apontar à direcção musical de Marko Letonja e à encenação de Andrea de Rosa uma preferência pela funcionalidade discreta, ainda que operativa, por demais contida face ao potencial dramático das obras, de "Erwartung" sobretudo, o díptico é notável, com a magnífica presença de Brigitte Pinter, Klementina numa ópera, a Mulher só na outra. Maior é então a queda com "Il Dissoluto".
Eu até entendo que há aspectos interessantes no texto de Saramago, que a um tempo remetem para o fantasma da impotência do sedutor e toda uma tradição de leitura do mito, e a outro são muitos característicos do autor, assinalando relações com "História do Cerco de Lisboa", "Todos os Nomes" e mesmo "O Homem Duplicado" (a relação Giovanni/Leporello, a inscrição dos nomes no catálogo). Mas a concreta obra que nos é dada a ouvir é o cúmulo do "pastiche" anódino.
Corghi é hoje um compositor em que a famosa editora Ricordi aposta forte, enquanto por vezes até é difícil encontrar partituras e materiais de outros autores que a casa em tempos publicou. A questão fundamental é todavia a de ser inaceitável que este compositor passe por minimamente representativo do que mais saliente existe no teatro musical contemporâneo. E a questão redobra-se então de uma outra, que tem também de ser claramente inscrita: por via de Saramago, as óperas de Corghi ganharam uma espécie de estatuto de obrigatoriedade num São Carlos, teatro nacional de ópera, de que permanecem ausentes autores maiores da contemporaneidade, como desde logo Nono e Berio - ou talvez deva mesmo dizer Calvino/Berio.
E com esta situação decorre também uma amplificação da notoriedade operada pelos "media", até com nótulas de recensão destituídas de qualquer pensamento crítico, enquanto outros factos importantes pouco são assinalados ou são-o sem questionamento das suas condições de apresentação. É-me inaceitável que o destaque à mediocridade anódina do "Dissoluto" de Saramago/Corghi vá de par com a falta de cuidado na estreia de "Graffiti (just forms)" de Pinho Vargas e a inexistência de atenção crítica às notáveis "Histórias Fantásticas" de Luís Tinoco.
Tenho uma posição duplamente reservada perante "Graffiti", estreada pela Orquestra Sinfónica Portuguesa, também sob a direcção de Marko Letonja, no passado dia 4 no CCB. No meu conhecimento continuado do trajecto do compositor não me é claro que a presente obra, num mesmo tipo de atitude expressiva/reflexiva da admirável "Six Portraits of Pain" estreada na inauguração da Casa da Música, consiga todavia uma equiparável articulação de desenho geral e individualização dos sete "Graffiti", o que aliás de algum modo está enunciado no próprio título. Mas se daí se pode deduzir também uma situação de precariedade, já não é aceitável que uma obra encomendada pelo São Carlos, pelos poderes públicos, para além de correr o sério risco de se inscrever na cultura do desperdício reinante e no caso a remissão a uma única apresentação, para mais o seja com menor cuidado, certamente derivado de poucos ensaios e empenho: a falta de trabalho na sonoridade das cordas ou de definição de planos levou ao paroxismo de termos ouvido sim aproximações, quais ""sketches" de "graffiti""!
É sabido que esta precariedade de obras contemporâneas, encomendadas mas depois na maioria das vezes objecto apenas da primeira audição, é uma situação genérica, analisada no famoso estudo de Pierre-Michel Menger, "Le Paradoxe du Musicien - Le Compositeur, le Mélomane et L"État dans la Societé Contemporaine". Mas o cidadão, e o cidadão melómano, tem o direito de interrogar publicamente se o São Carlos supõe que anda a fazer obrigações públicas repetindo situações destas. Acaso serão programadas de novo, por exemplo, as obras constantes da proposta Quatro Postais de Compositores Portugueses?
Por falar nessas, saudei na altura particularmente "Zapping" de Luís Tinoco, brilhante objecto paródico, aludindo directamente às outras duas obras que constavam do mesmo programa, as Sinfonias nº102 de Haydn e nº39 de Mozart. Mas para além desse estatuto eminentemente circunstancial, "Zapping" foi afinal uma obra que deixou marcas. Com "Sundance Sequence", é uma das peças de Tinoco que ocorreu ao ouvir agora as brilhantes "Histórias Fantásticas" sobre textos de Terry Jones (dos Monthy Python), encomenda da Orquestra Metropolitana de Lisboa, em apresentação conjunta com o São Luiz.
O sentido da narrativa e da direccionalidade musical, a pulsão, o brilhantismo da invenção tímbrica fazem de "Histórias Fantásticas" um notável sucesso. E deu gozo, que é mesmo o termo, ver o comprometimento do narrador João Reis ou dos músicos tão bem dirigidos por Cesário Costa, com grande destaque para o concertino Xuan Du.
Ao lado um do outro, aprendesse o São Carlos, teatro nacional, alguma coisa com os cuidados postos nesta apresentação, fazendo justiça à obra, pelo São Luiz, teatro municipal. Coisas..."




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